Resumo

Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa qualitativa realizada no Quilombo Irmandade Nossa Senhora do Rosário de Justinópolis, na cidade de Ribeirão das Neves/MG, com o objetivo de compreender de que forma a participação de crianças e adolescentes nas atividades culturais, sociais e educacionais contribui para a construção de sua identidade e senso de pertencimento. Por meio de entrevistas, observações participantes e aplicação de questionários, foram ouvidas crianças e adolescentes quilombolas entre 6 e 15 anos. Os resultados revelam que a vivência no quilombo se dá de forma orgânica e voluntária, fortalecendo o vínculo comunitário e a valorização das tradições ancestrais. A análise demonstra que a cultura vivida e transmitida no espaço do quilombo desempenha papel fundamental na formação subjetiva dessas juventudes e aponta para a urgência de políticas públicas que reconheçam e apoiem essas experiências.


Palavras-chave: Educação quilombola; Juventude; Patrimônio cultural imaterial; Identidade; Pertencimento.

 

quilombo

Foto: Rodolfo Ataíde

Introdução


As comunidades quilombolas representam importantes territórios de resistência, ancestralidade e afirmação cultural da população negra no Brasil. Com o passar das gerações, esses espaços têm se mantido vivos não apenas pela presença dos mais velhos, mas também pelo protagonismo das crianças e adolescentes que neles vivem e atuam. O Quilombo Irmandade Nossa Senhora do Rosário de Justinópolis, situado em Ribeirão das Neves/MG, é um exemplo concreto de como a cultura e os saberes tradicionais continuam a ser transmitidos e atualizados pelas novas gerações.
Diante de um cenário em que as infâncias negras são constantemente invisibilizadas nos discursos educacionais e culturais hegemônicos, este estudo busca lançar luz sobre as práticas e percepções dos jovens quilombolas, valorizando suas narrativas e vivências. Parte-se do pressuposto de que a participação ativa em diversas formas de expressão coletiva constitui um importante processo de construção identitária e fortalecimento de vínculos comunitários.
Assim, este artigo tem como objetivo investigar de que forma se dá a participação de crianças e adolescentes nas atividades do Quilombo, buscando compreender os sentidos que atribuem às suas vivências nesse espaço. Pretende-se também analisar as possíveis relações entre os saberes tradicionais e o universo escolar, bem como entender por que, mesmo diante de tantas oportunidades externas — como jogos, internet e outras manifestações culturais —, essas crianças e adolescentes continuam engajados nas práticas quilombolas.


Metodologia

A pesquisa adotou uma abordagem qualitativa, centrada na escuta e na observação participante como forma de acessar significados e experiências. O trabalho de campo foi realizado no Quilombo Irmandade Nossa Senhora do Rosário de Justinópolis/MG, espaço de referência histórica e cultural de Ribeirão das Neves.
Foram entrevistadas 11 crianças e adolescentes quilombolas, com idades entre 6 e 15 anos, também foram feitas observações durante atividades culturais, como o Congado, as festas tradicionais, a capoeira e celebrações religiosas, além de diálogos informais com membros da comunidade. O material empírico foi analisado a partir da técnica de análise de conteúdo, com o intuito de identificar categorias relacionadas à identidade, pertencimento e educação.


Referencial Teórico

A educação em contextos quilombolas vai além dos limites da escola formal. Trata-se de uma prática cotidiana de resistência e de preservação de saberes, que envolve valores, espiritualidade, oralidade e coletividade. Segundo Nilma Lino Gomes (2007), pensar a educação quilombola é reconhecer a centralidade da cultura e da ancestralidade na formação do sujeito negro, especialmente na infância, quando os vínculos com o território e com as práticas tradicionais são intensamente construídos.

No mesmo sentido, Brandão (2007) destaca que a educação popular é um instrumento potente para fortalecer o sentimento de pertencimento das populações às suas histórias e territórios, sendo essencial nos processos de valorização das culturas afro-brasileiras. Ela deve ser compreendida como parte de uma pedagogia da ancestralidade, onde o aprender ocorre na relação com os mais velhos, nas práticas coletivas e nos rituais que marcam a vida comunitária.


A infância quilombola, nesse contexto, não é apenas um momento de passagem, mas um tempo de protagonismo na manutenção das tradições. Caldart (2004) afirma que as comunidades tradicionais educam por meio da convivência, da participação ativa e da oralidade. Nesse sentido podemos pensar que é nesse convívio que os mais jovens aprendem o respeito, os saberes do congado, os cantos e os gestos que sustentam a identidade do Quilombo.

A construção da identidade, conforme Stuart Hall (2006), não é um processo fixo, mas uma construção contínua, especialmente nas comunidades que vivem sob múltiplas pressões sociais. Para as crianças e adolescentes quilombolas, essa identidade se forja na convivência com a cultura local, mas também em diálogo (por vezes em tensão) com os espaços institucionais, como a escola. Muitos jovens vivem o desafio de transitar entre dois mundos: o da escola, com sua estrutura eurocentrada e muitas vezes excludente, e o do quilombo, onde sua identidade é afirmada e reconhecida.

Dessa forma, compreende-se que a participação de crianças e adolescentes nas atividades culturais do Quilombo Irmandade Nossa Senhora do Rosário é parte constitutiva de seu processo de formação como sujeitos históricos, sociais e políticos. Ao participarem do congado, dos rituais, cantarem, cozinharem e cuidarem do espaço, esses jovens não apenas preservam a tradição, mas atualizam-na com suas próprias experiências e sentidos.

Apresentação e Análise dos Resultados

1. Participação nas atividades culturais e o protagonismo infantil


Todos os participantes relataram que frequentam o quilombo desde que nasceram e que sua participação nas atividades culturais é contínua e espontânea. Entre as atividades mencionadas, o Congado destacou-se como a principal manifestação, sendo praticada por todos os entrevistados. Também foram citadas outras práticas, como o Coral, a Capoeira, a Folia de Reis e o auxílio em tarefas cotidianas, como a limpeza e o preparo de alimentos.
Esse envolvimento direto revela uma vivência comunitária que se distancia da lógica da imposição. A participação das crianças ocorre de forma orgânica e prazerosa, como demonstrado por uma das falas: “Pra mim aqui é tudo perfeito. A gente aprende com os mais velhos, pode brincar com outras crianças, participar das festas”. Como aponta Caldart (2004), essa integração entre gerações é um dos fundamentos da educação em comunidades tradicionais, em que os sujeitos aprendem fazendo junto.

Vale destacar que, tanto pelas observações realizadas quanto pelas conversas com as crianças e adolescentes, ficou evidente que eles não estão isolados das experiências externas ao Quilombo. Pelo contrário, têm acesso a tecnologias, como celulares e internet, consomem conteúdos da mídia, participam de eventos e interações para além dos limites territoriais e culturais da comunidade. Ou seja, vivem plenamente a contemporaneidade, com todas as suas múltiplas influências e estímulos.

No entanto, mesmo diante dessa ampla exposição ao mundo externo, chama atenção o fato de que esses eles não apenas continuam participando ativamente das práticas tradicionais do Quilombo, como também demonstram grande valorização por elas. Há um reconhecimento, por parte das crianças e adolescentes, da importância dos saberes ancestrais, das práticas culturais e dos rituais comunitários na construção de suas identidades e no fortalecimento dos vínculos afetivos e coletivos.

Esse movimento revela uma convivência possível e potente entre tradição e modernidade, em que a presença das tecnologias e das dinâmicas contemporâneas não anula o valor das práticas ancestrais. Trata-se, portanto, de uma juventude que transita entre diferentes mundos, mas que escolhe, com orgulho e afeto, manter viva a memória e a história de sua comunidade.


2. Sentidos atribuídos à experiência no quilombo

Ao serem perguntados sobre o que aprendem no Quilombo, os jovens destacaram valores como respeito ao próximo, respeito às religiões, aprendizados com os avós, canto, dança, instrumentos musicais, capoeira, conhecimento dos fundamentos do Congado e ancestralidade. Uma das respostas que se destacou foi: “No Quilombo a gente aprende a respeitar os mais velhos e nem sempre fazer o que você quer pois nem sempre é o certo”.
Tais relatos indicam que o quilombo funciona como um espaço formativo no qual se constroem não apenas habilidades culturais, mas também dimensões éticas e relacionais, muitas vezes negligenciadas pelos currículos escolares. Isso reforça a análise de Brandão (2007) e Gomes (2007) sobre o papel da cultura como eixo estruturante da educação em territórios tradicionais.

3. Quilombo e escola: intersecções e distâncias

Apesar de todos os participantes frequentarem a escola formal, as respostas indicam uma percepção clara de diferença entre os dois espaços. A maioria afirmou que não fala sobre o Quilombo na escola, ainda que alguns gostariam de fazê-lo. Entre os motivos, destacam-se o medo do preconceito e a sensação de que “lá não se fala sobre a nossa cultura”.
Houve também quem expressasse desejo de que os colegas conhecessem o Quilombo. A vivência na escola é associada a conteúdos “das matérias”, enquanto o Quilombo é percebido como um espaço que “ensina para a vida”. Esse contraste reforça a pouca representatividade da cultura afro-brasileira nos currículos escolares.

4. Afetos e pertencimento

Quando perguntados sobre como se sentem ao participar das atividades do quilombo, a resposta mais recorrente foi “paz”. Esse dado chama atenção justamente por contrastar com a concepção mais comum e difundida do termo, muitas vezes associada à ideia de silêncio, tranquilidade e ausência de agitação. No entanto, as práticas vivenciadas no Quilombo estão longe de serem silenciosas: são marcadas pelo som intenso dos tambores, pelas festas animadas, pelas rezas entoadas em coro, pelas cantorias vibrantes e pelos encontros coletivos repletos de movimento e expressão.
Ainda assim, é nesse ambiente pulsante que os jovens afirmam encontrar paz. Isso revela uma dimensão subjetiva e relacional do conceito, que se afasta da noção eurocêntrica de paz como quietude e retraimento. Para eles, a paz está no pertencimento, na conexão com os ancestrais, na partilha de saberes, na liberdade de ser e de estar com os seus. É uma paz que se constrói na coletividade, na ancestralidade viva e nas práticas culturais que resistem e se renovam.
Além da paz, muitos também mencionaram sentimentos como alegria, leveza e uma espécie de energia inexplicável que o lugar proporciona. Alguns relataram que as atividades os acalmam, mesmo quando envolvem movimento e som. Isso reforça a ideia de que o Quilombo é vivido como um espaço de acolhimento, de proteção simbólica e afetiva, onde é possível experienciar bem-estar e equilíbrio emocional, ainda que em meio à efervescência das expressões culturais afro-brasileiras.
O sentimento de pertencimento é notável, como na fala de um menino de 9 anos: “Eu nasci aqui, cresci aqui e pretendo morrer aqui”. A força dessa identidade comunitária evidencia o papel do quilombo como referência afetiva e cultural insubstituível. Conforme Hall (2006), a identidade cultural é construída no entrelaçamento das vivências, símbolos e práticas que fazem sentido para os sujeitos.
5. Tradição, continuidade e futuro
Todos os entrevistados afirmaram que consideram as tradições do quilombo importantes para suas vidas e que pretendem transmiti-las para seus filhos. Isso demonstra uma conexão intergeracional sólida, sustentada não por obrigações externas, mas por um vínculo afetivo e simbólico com o território e suas práticas.
Curiosamente, nenhum dos jovens apontou desafios para participar das atividades do quilombo, tampouco mencionou que sua presença ali fosse forçada. Em tempos de dispersão digital e ofertas massivas de entretenimento externo, o engajamento espontâneo desses jovens com a cultura de seus ancestrais evidencia uma profunda valorização das raízes e do coletivo.

Considerações Finais


A pesquisa realizada no Quilombo Irmandade Nossa Senhora do Rosário de Justinópolis revela que a participação de crianças e adolescentes nas atividades culturais, sociais e educacionais do território se dá de maneira espontânea, afetiva e profundamente enraizada. Mais do que espaços de reprodução cultural, as práticas vividas no Quilombo se constituem como verdadeiros processos formativos, nos quais os jovens constroem sua identidade, desenvolvem senso de coletividade e fortalecem o pertencimento à sua ancestralidade.


Ao contrário do que muitas vezes é retratado nos discursos hegemônicos, essas infâncias não são passivas nem distantes das tradições: são protagonistas da continuidade cultural. A educação que se dá no quilombo é viva, prática, comunitária, e dialoga com valores éticos, religiosos e históricos que estruturam a vida em comunidade.

O contraste com a escola formal evidencia as lacunas da educação tradicional em relação à valorização da diversidade cultural e do reconhecimento das histórias negras no Brasil. Mesmo com esse distanciamento institucional, os jovens quilombolas resistem e reafirmam, em suas falas e práticas, o orgulho de pertencer ao Quilombo e o desejo de manter vivas suas tradições.

Esse estudo aponta, portanto, para a necessidade urgente de políticas públicas que respeitem e valorizem os saberes das comunidades tradicionais, especialmente no campo da educação. O reconhecimento do papel formativo dos quilombos pode contribuir para uma educação mais plural, inclusiva e conectada à realidade dos povos que historicamente têm sido silenciados.

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Referências Bibliográficas

● BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação popular. São Paulo: Brasiliense, 2007.

● CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do movimento sem terra. Petrópolis: Vozes, 2004.

● GOMES, Nilma Lino. Educação e identidade negra: pesquisa e práticas pedagógicas em espaços escolares e não-escolares. In: GOMES, Nilma Lino. Educação, identidade negra e formação de professores. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

● HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

● UNESCO. Diretrizes para a educação intercultural. Paris: UNESCO, 2006.

ESTE ARTIGO FOI FINANCIADO PELA LEI ALDIR BLANC ATRAVÉS DO EDITAL N° 118/2024 NOS TERMOS DA LEI Nº 14.399/2022 (PNAB), DO DECRETO N. 11.740/2023 (DECRETO PNAB) E DO DECRETO 11.453/2023 (DECRETO DE FOMENTO), DO MUNICÍPIO DE RIBEIRÃO DAS NEVES.