All for Joomla All for Webmasters

Não traia as suas origens e seja grande

Há muito tenho estudado, junto a alguns grupos em Ribeirão das Neves, a questão da relação dos moradores com a cidade. Nosso intuito é dar visibilidade a representações positivas da cidade, que fujam dos estereótipos pelos quais a grande mídia nos apresenta, mas sem esconder e enfrentar os reais problemas por nós vivenciados no Município. Em nossas discussões concluímos que aumentar o sentido de pertencimento de nossa população frente o local onde mora se mostra como algo fundamental para que tenhamos uma cidade melhor, pois é impossível fazer frente as dificuldades apresentadas por Ribeirão das Neves sem ter uma população formada por pessoas que se sintam pertencentes e que queiram transformar essa localidade em um lugar melhor.

Nesse processo reflexivo crescemos muito em nossa compreensão e nos libertamos de complexos que roubavam a nossa essência e não permitia que nos enxergássemos como singulares, fortes, resistentes, talentosos, honestos, humanos entre outras inúmeras qualidades que tive o privilégio de perceber nesses 35 anos de convivência com as pessoas dessa cidade. Gosto de brincar que Neves é o Brasil em miniatura, pois o processo de negação da identidade frente á cidade por parte de seus moradores, também é observado, em uma escala maior, em parte significativa do povo brasileiro. Devido nosso processo de colonização, que teve início com os portugueses e não se engane continua até hoje, o qual utiliza como principal arma a desconstrução da estima de nosso povo e tem como seus maiores beneficiados uma microelite econômica local - aqueles 1% que concentra mais da metade das riquezas do Brasil - aliada a interesses internacionais. Esse processo de colonização nos transformou em o que o escritor Nelson Rodrigues chamou de portadores de uma síndrome de vira-lata. Assim, por nos acharmos naturalmente inferiores, atrasados, menos inteligentes, indecentes e menos honestos que os demais povos do mundo, detalhe na maioria dos casos sem nunca ter visitado outro país, aceitamos viver em uma realidade que nos culpa pelas próprias mazelas as quais somos submetidos, pois a partir dessa visão merecemos pagar uma das maiores taxas de juros do mundo e bancarmos um sistema tributário onde pobres pagam mais impostos que os ricos – inclusive os pobres coitados integrantes da classe média que se acham ricos - e ao mesmo tempo não termos uma educação pública gratuita e de qualidade, um sistema de saúde que funcione, um transporte público descente, um trabalho digno entre outros direitos mínimos que garantem a dignidade humana. O fato mais revoltante, tudo isso ocorre dentro de um país riquíssimo, pois pra quem não sabe somos a 8° maior economia do mundo.     

Voltando à identidade nevense, um movimento que chama a atenção e permite que eu apresente as conclusões tecidas acimas é o fato de que por inúmeras vezes em eventos sociais fora da cidade ao encontrar amigos de infância, familiares e pessoas conhecidas nascidas e criadas em Neves, inclusive entendidas como “bem sucedidas acadêmica e economicamente”, quando toco em questões ligadas as nossas vivências na cidade, esses desconversam com medo de serem reconhecidos por pessoas de seu atual convívio como moradores e ex-moradores de Ribeirão das Neves, assim aceitando e confirmando estereótipos que injustamente nos são atribuídos.

Como descrevi acima, entendo o processo de assujeitamento e desconstrução da autoestima a que foram submetidas essas pessoas e as levaram a sentir vergonha de quem realmente são, mas gosto de dizer a elas, em uma tentativa de dar um sacolejo em sua autopercepção, que aprendi a não trair raízes com os grandes. O primeiro desses grandes é nosso poeta maior Carlos Drummond de Andrade, sua poesia rodou o mundo e lhe deu todos os prêmios possíveis. Drummond viveu por vários anos no Rio de Janeiro, mais devido a sua grandeza do que por sua própria escolha, pois quando nos debruçamos sobre o tema mais recorrente de sua escrita encontramos Itabira, cidade mineira não tão central, mas que teve o gigantismo de seu povo e paisagem utilizada como matéria prima para obra de nosso poeta.  Drummond era Itabira e Itabira era ele, o quintal da casa simples que viveu durante sua infância de menino do interior era metáfora para falar do mundo e sensibilizar até os corações mais duros. Outro grande da literatura Brasileira, o também mineiro João Guimarães Rosa é mais um exemplo médico, embaixador do Brasil na Alemanha, falante de vários idiomas e dono de uma inventividade literária que conquistou fãs em todo o planeta escolheu como tema de sua obra as histórias vividas pelas pessoas simples de sua terra natal, Cordisburgo. Para ele o Sertão era o Mundo e Mundo era o Sertão, em sua obra descreveu a grandeza, a inteligência, a sagacidade e a sensibilidade dos sertanejos, os quais eram classificados pela sociedade Brasileira entendida como “culta” como capiais, D’a roça, ingênuo, “sem cultura”, entre outras expressões preconceituosas. A grande ironia de sua obra é mostrar aos desavisados sobre o que é de fato cultura – inclusive os pseudo-intelectuais de plantão que reverenciam sua obra sem entender nada. Rosa nos mostra que na verdade são justamente eles o real  problema do Brasil, pois suas baixa estima, colonizadas e subservientes  até o osso, lhe fazem acreditar que só por viverem em um grande centro, terem acesso a teatro, cinema e a uma educação formal são mais “cultos” que as outras pessoas as quais classificam caridosamente como “humildes” – eufemismo para ignorantes.

No campo da música os exemplos são infinitos. O primeiros é Tom Zé, o homem de Irará, cidade como outras muitas do interior da Bahia, comum, pacata até hoje lar de poucos milhares de habitantes, a qual, se não fosse por seu mais celebre habitante, que a fez tema principal de sua obra descrevendo em suas músicas seus personagens, lugares e curiosidade , talvez não seria por nós conhecida. A tropicália, movimento de ruptura da música brasileira que Tom Zé ajudou a construir, pode ser entendida em parte como movimento do artista mostrando Irará para o mundo.

Para aproximar do universo da periferia temos outros dois nomes que merecem citação. O primeiro Mano Brown, intelectual orgânico, nascido e criado na favela, transformou a exclusão do jovem, negro, abandonado pelo pai e assediado pelo mundo do crime em arte. Descreveu a realidade da periferia paulista como poucos e falando da gente de sua quebrada ajudou a criar um dos braços mais autênticos da Música Popular Brasileira. Por fim, orgulhosamente podemos citar a pequena gigante Tamara Franklin, mulher, preta e nevense. Essa artista tem como matéria prima para o seu trabalho a crítica a todo o peso que tenta nos diminuir e ser menos. Sua obra fala do que nos singulariza como povo e que os outros tentam transformar em estereótipo.  Quando escutei o disco da Tamara, tive a feliz constatação; “essa foi salva do veneno do preconceito de raça , de gênero , de classe e de origem”, ainda mais tenho fé que o seu som pode servir de antídoto para o processo de desconstrução da estima da juventude nevense. Em suas letras, Tamara, assim como Drummond e Guimarães Rosa, mostra que valorizar as raízes é caminho para nos tornarmos grandes, pois nossas vivências na cidade, boas ou ruins, nos faz ser quem somos, ainda mais mostra que tudo que fazemos reflete nossas origens e não reconhecer isso nos faz ser uma imitação, uma fralde e esse alto engano nos apequena, destroem nossa estima e nos torna menos do que poderíamos ser.  

0
0
0
s2smodern

Os artigos publicados são de inteira responsabilidade de seus autores. As opiniões neles emitidas não exprimem, necessariamente, o ponto de vista do RibeiraoDasNeves.net.

bg contorno